Redenção
–
Antonio Caetano –
Sebastian
fez Fúria transpassar o velho.
A
barba branca e pontuda da velha raposa ficou empapada com a baba que vazava suja
de sangue.
A espada perfurou e destruiu
o que encontrou. Armadura, cota de malha, esterno e coração. Cortando e
invadindo. A sensação não era nova para o guerreiro. Matara seu primeiro
oponente os dezesseis anos, e aos 23 já havia perdido a conta dos que morreram
por Fúria.
Transpassar.
Era assim que ele
preferia matar. Sentia como se invadisse o direito à vida do outro. Como se
violentasse aquela forma de vida que dependia apenas dele para prosseguir. E
enquanto podia, enquanto era possível, transpassava.
A morte causada pela
espada alimentava velhas e familiares necessidades. Não era como espetar terra
fofa, como se lembrava de ter feito diversas vezes, brincando com uma espada de
madeira na fazenda onde cresceu. Havia diferentes estágios da perfuração no
corpo, e sentia no punho cerrado esses estágios. A vestimenta férrea da armadura não provia tanta
graça, pois não era viva. Mas a pele, a carne e o osso, com tantas texturas
diferentes, interligando-se em laços de vida e morte, essas sim eram sensações
dignas de um homem experimentando a vitória em batalha.
Mas abrir alguém à
lâmina era só a primeira parte. O corpo se abria e as sensações que isso trazia
eram únicas. Na febre da batalha essas sensações eram prazerosas, catárticas. O
sumo da vida fluía, água e sangue vazavam, banhando o corpo do oponente, a
terra e a si mesmo. Mas nada era mais impressionante do que o momento em que a
alma deixava o corpo. E aquele momento, ele tinha certeza, podia ser visto nos
olhos do derrotado. As pupilas dilatavam, abriam-se como o corpo transpassado. O
negro da morte expandia-se nos olhos do oponente, e a alma escapava.
O dono de Fúria era um
filho da guerra. Era feito de guerra. E a guerra em que lutava agora mudaria
tudo, formaria tudo, e ao mesmo tempo em que destruiria, construiria. Todos os
outros lutavam pelo mesmo motivo, mas ele tinha um motivo particular. Só queria
saber a verdade. E mataria quem encontrasse na frente para consegui-la.
*
Antes o mundo vivia em paz. Ou pelo menos um período de paz
entre guerras. Lembrava de correr por pastos sem fim, de escalar em árvores e
se banhar em rios. Ajudava seu pai no serviço. Seu pai, olhos claros,
arregalados e imóveis, de pupilas dilatadas.
No dia da morte do pai estava ao lado dele, ajudando no
arado. Havia atirado uma pedra em um passarinho pousado em um arbusto. O pai, que
era sério quase todo o tempo, o repreendera e envolvera o passarinho em suas
mãos enormes. As mesmas mãos que partiam a lenha e que aravam a terra
mostravam-se delicadas, acariciando o corpinho diminuto do pássaro. Lembrava de
ter perguntado ao pai sobre a muralha naquele momento.
“O que tem além da muralha, papai?”
“Porque essa pergunta agora, menino?”
“Todo mundo fala que temos que ir pra lá, e que lá é bom.”
O pai estava concentrado na massagem que fazia no
passarinho.
“Nossa vida é aqui.”, dissera o pai.
Ele não entendia muito das coisas que o pai dizia, a não ser
as coisas que ele era mandado fazer.
“Mas mamãe diz que todo mundo está indo pra lá. E que
deveríamos ir também. Que lá é mais seguro. Pra quando a muralha sumir, agente
poder ir pro outro lado...”
“Nossa vida é aqui”, dissera o pai novamente. “As pessoas só
tem que fazer aqui o que esperam encontrar lá.”
Igual das outras vezes, o menino não entendera.
“Como?”
“Comece fazendo isso”, disse o pai sério, enquanto estendia
as mãos ao filho, oferecendo o passarinho. O ensinara a aquecer o animal com o
hálito e a lhe alisar as costas. O pássaro alçou vôo logo depois. Pelo jeito não
estava tão machucado, afinal.
Já quase escurecia quando pai e filho caminhavam juntos na
volta pra casa. No meio do caminho um grupo de cinco homens – lembrava que eram
cinco, pois tinha acabado de aprender os números e havia contado os homens
diversas vezes – se aproximou. Ele não entendia o que queriam, mas falavam de
uma espada. Queriam uma espada. O pai não dera – é claro, o pai não tinha
espada, só uma enxada – e disse aos cinco homens que deviam ir embora.
Eles não foram embora. Um deles gritou. O outro apontou para
o menino, e foi aí que o pai gritou e bateu no homem. O pai batera em outros
homens, e eles revidaram. O garoto não fizera nada. Não podia fazer nada. Não
gritara, não chorara. Aquilo era mau, mas ia acabar. Sabia que o pai
conseguiria, pois o pai iria deixá-los seguros, como sempre fizera. Um dos
homens, ele lembrava que era o mais velho, feriu o pai com a espada. Lembrava
da ponta dela aparecer vermelha pelas costas do pai, como um espinho sendo
espremido pra fora. O homem mais velho puxara a espada de volta, e o pai caíra.
O guerreiro não se lembrava dos rostos dos homens. Queria
lembrar. Queria guardar na memória os rostos dos assassinos de seu pai e de sua
mãe. Nem ao menos lembrava o rosto de sua mãe. Sobre a morte dela sabia menos
ainda. Apenas o que os outros lhe contaram. De como o menino arrastara o corpo
do pai de volta, e de como cinco homens haviam incendiado a casa com sua mãe
dentro. Nada do que contaram mais tarde acendera mais lembranças pra ele. Só se
lembrava do rosto do pai, e de como estava pálido, e de como os olhos claros
dele tinham as pupilas dilatadas.
Hoje não lembrava quase nada. Lembrava que havia cinco
homens, mas não lembrava seus rostos. Lembrava que eles queriam uma espada, mas
não se lembrava de ter escutado o motivo. A espada que queriam estava com ele
agora. A espada que tinha o nome de Fúria escrito no aço.
Os cinco homens queimaram a casa sem saberem do alçapão
debaixo da cozinha. Era lá que Fúria estava. O pai a guardara bem seguro e nem
mesmo sua esposa jamais soube. A pobre mulher morrera protegendo algo que não
sabia existir.
Hoje o guerreiro tinha apenas muitas perguntas. E ela se formara quando o
fazendeiro, vizinho e amigo da família, o homem que o tinha criado, lhe contara
algo sobre a espada.
“O seu pai uma vez falou que esteve do outro lado da muralha,
bem antes de ter casado com sua mãe. Eu costumava implicar com ele por causa
disso, sabe? Ele dizia que trouxera um tesouro de lá, uma espada muito bonita,
de um metal que ele nunca tinha visto. Eu, ainda sem acreditar, pedia pra ver a
tal espada. Mas ele nunca me mostrou, e nem a ninguém, dizia que podia ser
perigoso. Por muito tempo pensei que fosse mesmo mentira, e que essa espada não
existisse. E mesmo ele jamais voltara a tocar no assunto. Mas agora, aqui está
ela, bem na minha frente! Precisamos escondê-la outra vez, e você não pode
contar a ninguém sobre ela, entendeu menino?”
A pergunta que queimara dentro do menino transformara-se em
um objetivo. Um sonho. Uma obsessão que não o abandonara desde o dia em que
ouvira a história sobre o pai e Fúria. Iria atravessar a muralha. Algo sobre
esse lugar o remetia ao seu pai. Não tinha esperanças bonitas sobre lá, nem
qualquer ilusão sobre uma vida melhor. Sua vida fora consumada anos atrás. Mas
precisava saber desesperadamente sobre Fúria. Precisava saber o que a espada
significava e o quanto valia. Ela tinha de valer alguma coisa! Sua família
morrera por ela. E precisava saber a quem pertencia.
Pertencera. Ninguém a
tomará de mim.
*
Tudo sobre a muralha era um mistério. Na época em que o pai
de Sebastian nascera foi quando ela surgiu. Simplesmente aparecera, era o que
diziam. Um dia não estava lá, e no dia seguinte estava. Logo todos se
perguntavam o motivo disso. Não era coisa de gente, isso com certeza. Para uns,
a muralha era coisa de Deus, para outros, de Deuses. E da Sombra, para poucos.
Uma opinião permanecia universal: estavam
sendo isolados.
Muitos eram aqueles que também almejavam atravessar a
muralha. E muitas tentativas de derrubá-la ou perfurá-la foram feitas. Sua
extensão era enorme, e por mais que caminhassem acompanhando-a, jamais encontravam
um fim, ou sequer uma falha. Não se sabia se a muralha os mantinha presos, ou
se prendia alguma coisa. Ela também não fazia sombra, motivo de dor de cabeça
dos estudiosos.
Também não se via o topo. Era mais alto que as nuvens, mais
alto do que qualquer pássaro poderia voar. E mesmo sem ninguém jamais ter visto
o topo, muitos tentaram escalá-la. Todos morreram tentando. Por mais que os
cuidados fossem tomados, e que ano após ano geringonças cada vez mais
elaboradas fossem construídas, para auxiliar na escalada, a muralha
simplesmente derrubava a todos, implacável.
Com o passar do tempo a palavra dos sacerdotes tornara-se a
única creditada – porque os investigadores e estudiosos simplesmente não
conseguiam chegar à conclusão alguma –, embora facções diferentes começassem a
rivalizar, cada uma tendendo para lados diferentes da suposta verdade. Enquanto
um grupo dizia que a muralha era um castigo, um aviso, e um símbolo da vergonha
humana, o outro grupo dizia que ela era o alicerce que passara a segurar as
duas metades do mundo, que havia se partido. E havia aqueles que acreditavam
que um motivo era a causa do outro.
Todo o dia, no mesmo horário em que se sabia que a muralha
tinha surgido, crentes paravam o que estavam fazendo e começavam a rezar na
direção da mesma, pedindo perdão e sabedoria. E uma vez por ano, na data do
surgimento, a grande peregrinação acontecia, levando milhares de crentes a se
lamentar na muralha. Faziam pedidos, faziam promessas e agradeciam. Tornara-se
costume escrever na muralha o que se desejava alcançar; uma graça, um milagre. Sendo
a grande maioria o nome de pessoas enfermas, para que se curassem.
Cidades foram construídas às margens da muralha. O
pensamento geral era que, se um dia ela surgira do nada, talvez desaparecesse
da mesma forma. E assim, quem estivesse perto para presenciar, finalmente
compreenderia.
Fosse o que fosse, independente de qualquer coisa, a muralha
continuava lá, vasta e infinita, avançando por sobre terras e mares. Sendo intransponível
e desejada. Ignorando a todos. E jamais sendo esquecida.
*
A guerra pela posse da muralha tivera início há pouco mais
de um ano. Mas desta vez era diferente. A impressão que se tinha era que o
mundo se acabaria com esta guerra, e que desta vez seria tudo ou nada.
A tensão iniciada há setenta anos, no dia do surgimento, não
fora nada comparado ao que se instalara há um ano. No passado houve lutas, sim.
Em grande parte por medo do desconhecido, por divergências religiosas e
disputas por terras à sombra da muralha, consideradas melhores.
Mas isso foi antes da porta. Desde sempre, a muralha fora
lisa como mármore, negra como carvão e intransponível. O mundo acostumara-se
com isso. Mas do nada, lá estava ela, uma porta com no mínimo cinqüenta metros
de altura e vinte de largura. Localizando-se em uma parte da muralha
extremamente conhecida, onde anualmente pessoas rezavam, choravam e imploravam
por milagres. Em uma parte da muralha onde jamais houvera porta alguma. E o significado disso era claro como água.
Depois de tanto tempo imaginando, e de tantas tentativas
frustradas de atravessá-la, a muralha finalmente se pronunciara. Uma passagem. A
responsável pelo início da guerra atual.
*
Aquele mundo conhecia duas potências, o Clero e a Monarquia.
E um mundo erguido sob tais forças, via constantemente certas alianças sendo
feitas e desfeitas. Tanto o Gran-Sacerdote quanto o Rei, e falamos aqui em
títulos, não em indivíduos específicos, eram a grande Aliança que movia o
mundo. Amigos que apertavam as mãos direitas e cruzavam os dedos pelas costas
com as esquerdas. Confiava-se desconfiando, e assim a “paz” seguia em frente.
Clero e Monarquia erguiam forças com o intuito de
evangelizar o mundo e proteger o rei, respectivamente. Há muito tempo,
verdadeiras armas humanas vinham sendo criadas por estas duas potências.
Começou com o Clero, quando crises com religiões pagãs e rumores de magias
curativas se alastravam por todos os cantos do mundo. Estas outras religiões,
batizadas pelo Clero como seitas, ameaçavam o poder do Gran-Sacerdote, à medida
que o número de seguidores aumentava.
Para exterminar esta onda profanadora, o Gran-Sacerdote da
época solicitou soldados ao Rei, para que decapitassem, enforcassem e queimassem
qualquer um que demonstrasse sinais de heresia. E pensando em um controle à
longo prazo, criou o Chamado - um recrutamento de meninos com menos de dez anos
para dedicar sua vida aos propósitos da igreja. Estes garotos eram educados e
ensinados nas mais diversas artes que os livros podiam proporcionar, assim como
qualquer arte que os melhores mestres guerreiros poderiam forjar. Com o tempo,
o Gran-Sacerdote tinha em seu poder umas das forças mais letais do mundo.
Décadas mais tarde, durante um torneio, o rei vigente na época
sentiu-se seriamente ameaçado ao presenciar as habilidades dos recém
proclamados Guerreiros da Paz. Por esse motivo resolveu cobrar a dívida que a
igreja tinha com o reino, quando solicitou os soldados que livraram a terra dos
hereges. O que ele queria era o conhecimento para forjar guerreiros como
aqueles, mas sabia que o Gran-Sacerdote não entregaria seu trunfo. Então pediu
cinco Guerreiros da Paz, à sua escolha, para que fizessem parte de sua guarda.
E assim foi feito.
Os cinco Guerreiros da Paz levados pelo rei foram os fundadores
do atual Exército Real. Mais tarde, em uma das disputas travadas pelas duas
potências, provaram-se extremamente leais ao rei, lutando com antigos parceiros
aparentemente não fazendo diferença entre eles e qualquer um com quem tivessem
de travar batalha. A partir desse dia também passaram a ser conhecidos como Os
Corações Leais. Uma força tão letal quanto àquela que lhes deu origem.
Naquele tempo não se imaginava que as duas potências
entrariam em um conflito definitivo, muito menos que o objetivo desse conflito
seria decidir quem teria o direito, ou não, de atravessar uma porta.
*
A marcha para a muralha durara quinze dias, com três paradas
por dia. Mas para alguém com a determinação de Sebastian, e que como ele,
esperara por essa oportunidade perfeita a mais tempo do que gostaria de
admitir, não era uma jornada cansativa. A cada metro que avançava mais perto a
muralha ficava.
Em sua marcha, Sebastian aliara-se aos Rebeldes. Nas
comitivas rebeldes o sistema hierárquico funcionava da seguinte forma; quem matasse
alguém de patente alta, sendo do Exército Real ou dos Guerreiros da Paz, e
pudesse provar tal feito, recebia uma patente compatível com a do homem que havia
matado. O capitão, por exemplo, matara o general Io, o todo poderoso
responsável pela guarda da bastilha, num levante vitorioso que levara à soltura
de cinqüenta companheiros condenados à morte. Bateram em retirada muito antes
que o Exército Real chegasse, e desde então eram o inimigo número um do estado,
e de Deus.
Sebastian não matara ninguém importante, por isso ingressara
sem pretensões no grupo. Mas com o tempo, ao verem o que ele se tornava quando
brandia sua espada, ganhara o respeito dos companheiros e o direito a lugares
de honra durante os saques. Como ficar ao lado dos companheiros de patente mais
alta no último saque feito no posto Sul da Igreja. Tais postos eram de uso
exclusivo dos Guerreiros da Paz, e geralmente estavam entupidos com os melhores
equipamentos.
Os rebeldes viviam de saques, e o ódio que sustentavam pela
igreja e pelo rei eram seus lemas principais. Não queriam se submeter. Viviam
como desejavam e iam para onde queriam ir. Além de apreciarem uma boa luta. Por
isso era fundamental que eles fossem peça importante nas mudanças que o mundo
vivia
O clero reclamara a entrada para o outro lado da muralha
como sua, tomando posse do que estivesse além dela. Afinal, a muralha fora
construída por Deus, e só a igreja devia ter o poder sobre seus mistérios. Mas
o rei também reclamara seu direito à passagem e à tudo o que estivesse do outro
lado. Afinal, a muralha era divina, e o rei era o homem escolhido por Deus para
guiar o povo e reinar sobre eles.
E mesmo os rebeldes, que não hasteavam bandeiras, sabiam que
além daquela parede colossal teria de haver algo de poderoso. Portanto nem a
igreja e nem o rei deveriam por suas mãos cobertas de anéis sobre ele. E assim a marcha para a muralha iniciara.
*
Sebastian e o restante dos rebeldes, depois de erguerem
acampamento na primeira noite de marcha, se reuniram para discutir os cenários
que se estabeleciam. Falaram sobre as alianças necessárias que o Clero e a Monarquia
precisariam fazer para arrebanhar milhares de homens para lutar por eles, pois
tanto os Guerreiros da Paz quanto os Corações Leais eram valiosos demais para
serem gastos matando uns aos outros. Eram uma peça importante, e tinham de ser
usados na hora certa.
Havia dois grandes e famosos grupos de mercenários, que
cobravam caro justamente por terem bocas demais para alimentar. Os Crânios e os
Errantes. As promessas do Clero, assim como uma boa quantia de entrada, atraíram
os Crânios para o seu lado. E o simples fato dos Crânios fecharem negócio com o
Gran-Sacerdote, foi questão decisiva na aliança feita entre o Rei e os Errantes.
E assim novos grupos seguiram suas preferências,
sucessivamente. Pois a muralha era uma questão mundial e todos queriam
atravessar.
Seguindo os Crânios e consequentemente a igreja, vieram os
Filhos do sol, selvagens de pele vermelha, do extremo ocidente. Os Peregrinos,
com suas comitivas infinitas de carroças enfeitadas de guirlandas, e os
caçadores, homens simples, tementes a Deus, que passavam mais tempo na mata
caçando do que na presença de qualquer outro ser humano. Não eram guerreiros de
batalha, mas guerreavam a cada dia por abrigo, comida e umas poucas moedas para
sustentar a família. Eram durões o bastante. Ou ao menos o eram para morrer na
linha de fronte.
Do outro lado, seguindo os Errantes e o Rei, estavam os
Canos Longos, um povo costeiro, pescador, comumente vistos usando suas botas de
canos longos para pescar nos extensos costões rochosos, usando arpões e lanças.
Seus frutos do mar eram muito apreciados na corte. Logo depois vieram os
Herdeiros, um grupo de mercenários menor que se separara dos Crânios décadas
atrás, e clamavam suas pretensões de serem mais valorosos e mais poderosos
mercenários que seu grupo de origem. E os Sanguessugas, gente da pior espécie.
Muitos inclusive acreditavam que não eram gente, e sim um tipo de povo
primitivo, que não tinham um pingo de civilização na mente. Eram brutais, frios
e, o mais importante, assassinos cruéis. Batizaram-se de Sanguessugas por se
darem o trabalho de desmembrarem os inimigos caídos até a última grama,
manchando todo o campo com sangue. Não era uma estratégia muito boa, perdiam
muito tempo e podiam ser mortos facilmente no meio de seu ato sanguinário. Mas
eram um povo estranho, e metiam medo.
Sebastian poderia estar em qualquer um desses grupos, mas
lhe pareceu mais certo permanecer com o grupo de pessoas que fariam tudo para
conseguir seus propósitos, menos fazer alianças. Não queria ter nada haver com
ninguém. Não queria nada de valor que pudesse estar do outro lado da muralha,
não queria ter terras, nem milagres. Queria saber a verdade. Queria saber sobre
Fúria. Queria saber por que sua família tinha morrido.
E do outro lado era o único lugar que, ele tinha certeza,
encontraria essas respostas.
*
De onde estavam, no alto de uma colina, a uns três
quilômetros da muralha, Sebastian e os rebeldes tinham uma boa visão dos
acontecimentos. A gigantesca muralha, de frente a eles, ficava ao sul, enquanto
que as forças do Rei vinham do oeste, e as do Gran-Sacerdote, do leste. Por
trás e ao redor deles, cadeias de altas colinas formavam um corredor estreito
para o campo de batalha. Algumas das colinas possuíam formações rochosas, um
esconderijo perfeito para a confecção de uma emboscada. Mas o capitão já
enviara batedores para estes locais, que logo voltaram e garantiram que a área
estava limpa. Um erro imperdoável das duas potências e seus seguidores.
A cidade construída
na base da muralha estava vazia. Ninguém queria estar por perto quando o
caminho das marchas colidisse. Estavam certos. A visão de Sebastian e do resto
dos Rebeldes era um verdadeiro mar de pessoas colidindo. Os sons dos gritos de
raiva e de dor somavam-se com os sons das lâminas das espadas colidindo e com o
relinchar dos cavalos. Ainda não havia muitos mortos, e os gritos do calor da
batalha ainda reverberava com força, o que fez Sebastian calcular que ainda não
se passara muitas horas desde que tudo começou. E como previsto, a luta
pertencia aos mercenários naquele primeiro momento, assim como todos os outros
grupos menores de civis. Os sete mil Guerreiros da Paz enfileiravam-se em suas
montarias atrás de seus mercenários, observando e aguardando. O mesmo se dava
com os cinco mil Corações Leais.
Sebastian estava inquieto. A porta imensa, incrustada na
muralha, era facilmente visualizada por trás da maior concentração de homens
lutando. Lá estava sua passagem. A porta permanecia fechada desde que surgira,
mas não importava. Sebastian sabia que atravessaria. Apenas tinha de chegar lá.
Sua parceria com os Rebeldes seria crucial.
Não haviam se deparado com nenhuma sentinela no caminho, e
ainda não tinham sido vistos por nenhum dos Guerreiros e dos Corações. Uma
fraqueza imprevista, e que facilitaria tudo. Aqueles homens, tão bem treinados
pelo clero e pela monarquia, pareciam padecer de um excesso de confiança que
sempre era mortal no campo de batalha.
Mais uma hora se passou desde que os rebeldes chegaram, e
ainda não tinham sido vistos. A chacina lá embaixo continuava a evoluir.
Sebastian avaliou e impressionou-se com o nível de luta dos mercenários.
Crânios e Errantes eram facilmente distinguíveis, pois os Crânios usavam ossos
em suas vestimentas. Ambos os grupos valiam o dinheiro que cobravam. As ações
de ataque e defesa eram perfeitas.
Do lado leste, Os Filhos do Sol posicionavam-se logo à
frente dos Guerreiros da Paz, atirando com suas setas envenenadas a longo
alcance. Os Peregrinos não tinham ordem e estilos de luta bem definidos, mas se
utilizavam de golpes baixos e truques de ilusão – lançando gases que
dispersavam as formações inimigas, e eram tão lacrimejantes e ardentes que
cegavam o alvo em segundos, tornando-os fáceis de apunhalar. Os caçadores eram
também exímios nos arcos, mas se aproveitavam mais de seus machados.
Mais para o lado oeste, os Canos longos espetavam um inimigo
após o outro com suas lanças e arpões, com tanta força e precisão que muitas
vezes três homens eram empalados ao mesmo tempo. Os Herdeiros, cujos golpes de
massa e espada quase sempre destruíam os escudos, se destacavam por sua força.
Já os Sanguessugas... Sebastian não se lembrava de presenciar atos tão inumanos
em batalha. Os monstros se banhavam em sangue por puro prazer, conseguiam arrancar
corações só de enfiar as mãos garganta abaixo dos oponentes, e riam enquanto
enforcavam outros com as próprias tripas.
Os Guerreiros da Paz avançaram. Os trotes de seus cavalos e
o som de suas trombetas fizeram até mesmo Sebastian se arrepiar. Os Corações
Leais fizeram o mesmo. A hora estava chegando.
Quando as famosas forças armadas do Rei e do Clero colidiram,
a impressão que passava era a de que a batalha acontecia em um ritmo acelerado.
Nada se comparava à agilidade e à pureza dos movimentos dos Guerreiros e dos
Corações. Ambos possuíam montarias, mas isso não impedia que saltassem para a
montaria do inimigo - no que Sebastian só conseguiu associar a movimentos
circenses - matassem o oponente, e voltassem “voando” para sua montaria
original. Ambos usavam uma espécie de arpão menor, ou como Sebastian chamava
cabo-arpão, escondido por debaixo das vestes nos braços, bastando um único
movimento rápido na direção do inimigo para fazer este cabo metálico e pontudo
atravessar cabeças e pescoços com facilidade. Mal se acompanhava os golpes
feitos com as espadas.
Meia hora mais tarde o capitão dos Rebeldes anunciara que a
vez deles chegara. Sebastian mal podia conter sua euforia. Os Rebeldes iniciaram
a descida pela colina em direção ao campo de batalha, berrando gritos de guerra
incompreensíveis, com seus rostos transformados em carrancas monstruosas. Não era
uma força tão grande, mas duzentos homens Rebeldes eram algo a se temer,
principalmente com a vantagem do elemento surpresa ao seu lado. Foi então que o
inesperado aconteceu.
Por detrás das colinas e suas formações rochosas, onde mais
cedo os batedores rebeldes fizeram sua varredura, uma nova frota irrompera. Ou
melhor, não uma nova frota, mas cavaleiros de Guerreiros da Paz e de Corações
Leais. De repente os Rebeldes se viram cercados pelas duas potências, e não
apenas pelos membros comuns de sua armada, mas pelos mais credenciados generais
de cada uma. Reconheciam-se eles pelas medalhas com a pomba dourada no peito dos
Guerreiros, e o pentagrama no dos Corações. A estrela de cinco pontas fazia
alusão aos cinco membros do Exército Real entregues ao rei pelo Gran-Sacerdote.
Os cinco primeiros, cujos cinco
descendentes ainda faziam parte da armada.
“Os desgraçados vieram do nada!”, Sebastian não podia acreditar.
“Separaram frações menores de suas forças e se uniram para nos emboscar!” O
elemento surpresa tinha sido perdido com essa nova virada. Depois de tudo,
estavam à mercê dos mortais cabos metálicos cuspidos por ambas as potências.
Homens e mais homens Rebeldes tiveram as jugulares atravessadas em meio à
cavalgada, e mais homens morriam quando Guerreiros saltavam de suas montarias e
aterrissavam em cima deles, torcendo seus pescoços. Sebastian vira um dos
Corações repetir os movimentos de saltos dos Guerreiros em sua direção. Sem
parar a cavalgada desembainhou Fúria e cortou o desgraçado ao meio com um só
golpe.
Fúria era capaz disso. Não mais se surpreendia com o poder
de destruição da espada desde quando quase morrera ao desembainhá-la pela
primeira vez. A morte brutal do Coração Leal chamou a atenção dos outros, que
convergiram para Sebastian. Inclusive os cincos primeiros, com a insígnia do
pentagrama em tamanho maior no peito, e capas brancas por sobre as armaduras. A
visão de um deles, o mais velho, com uma barba branca e pontuda, liderando os
outros quatro, trouxe de volta um sentimento em Sebastian que descera como um
raio e quase o fizera cair do cavalo.
Sebastian não lembrava os rostos deles, só lembrava que eram
cinco.
“É a espada!”, gritara o velho de barba pontuda. “Peguem a
espada!”
Sebastian entendera, e dezesseis anos depois, lembrara. Puxara
as rédeas do cavalo, forçando-o a diminuir a velocidade, e guiara-o em um giro
de cento e oitenta graus. Confrontaria os cinco de frente.
Dois saltaram para ele como rãs, pernas flexionadas e braços
prontos para liberarem os cabos-arpões. Os desgraçados pulavam alto, creditava
isso a eles. O que saltara primeiro logo liberou seu cabo-arpão. Sebastian
sentiu que este vinha direto para o meio de seus olhos antes de desviá-lo com
Fúria. O primeiro dos assassinos de sua família a morrer, morrera cortado
longitudinalmente, da base do pescoço à virilha. Fúria lhe garantia movimentos
tão rápidos que quem via de fora mal podia entender o que se passava.
O segundo assassino de sua família recebera um corte que lhe
arrancara o braço direito fora, antes que atirasse qualquer coisa. Deixaria
aquele pra morrer depois. Mal pensara nisso e sentira outro cabo-arpão se
aproximando. Desviara dele curvando-se para frente de seu cavalo. A decisão de
abandonar a montaria veio rápida, e antes que percebesse imitara o mesmo salto
feito pelos Corações e Guerreiros, aterrissando no terceiro assassino. Enfiara
Fúria bem no meio do corpo do desgraçado, sentindo o sangue quente banhar-lhe a
face. Virou-se rapidamente para trás desviando-se de outro cabo-arpão, enquanto
deixava o quarto assassino que voava para ele duas pernas mais baixo. Aquele
também morreria mais tarde.
O velho sobrara. Não pulara sobre ele como fizeram os outros,
a raposa velha. Sebastian tomara as rédeas do cavalo e o direcionara para o
último assassino. O velho, sem querer dar chances de ser dilacerado como os
companheiros, impulsionou os dois braços e atirou dois cabos-arpões. Sebastian
desviou um deles com Fúria e agarrou o outro no ar. Com um puxão derrubou o
velho desgraçado do cavalo, que rolara por sobre a campina gritando.
Sebastian desmontara e fora direto para o velho. Estavam
muito próximos da batalha em si, mas não chamaram a atenção de ninguém. O banho
de sangue continuava inabalado. Passava do meio da tarde, e o clima, antes
ameno passou a esfriar. O ar cheirava a morte.
A velha raposa levantou-se com mais desenvoltura do que
Sebastian teria adivinhado. Não era à toa que o desgraçado era um dos Cinco.
“Sei exatamente quem você é, Sebastian”, disse o velho com
um sorriso ferino. “E não é pela espada, não. Parece que estou diante de seu
pai mais uma vez.”
“Não fale do meu pai.”
“Porque não falaria? Um dos meus melhores pupilos! Muito
talentoso.”, vendo o rosto confuso de Sebastian, continuou. “É, rapaz. Seu pai
era um dos Corações Leais, não sabia? O desgraçado... Eu devia saber que ele
não contaria isso à família. Se tivesse contado talvez você não estivesse ao
lado destes rebeldes imundos”
Sebastian preparou um golpe de duas mãos com Fúria, o velho
não se moveu para se proteger. Apenas ergueu a mão como se pedisse permissão
para falar.
“Não posso contra essa arma magnífica. O vi usar contra meus
companheiros, e vi seu pai usá-la também. Sei do que ela é capaz. Não seria uma
luta muito honrosa, é claro. Tenho certeza que podemos torná-la mais
interessante...”
Sebastian fez Fúria transpassar
o velho. Não tinha interesse em nada que ele tivesse para falar. Só tinha
interesse em seus olhos, e em como queria vê-los daquela forma, arregalados,
assustados, deixando a alma escapar. Então disse, cravando a espada mais fundo.
“É bom que não tenha família, seu desgraçado. Porque se
tiver, trancarei todos eles dentro de casa e queimarei até o último pedaço que
restar!”
Não faria realmente isso, mas ver a raposa velha morrer com
terror nos olhos, fizera a mentira ser tão doce como o mel. Não tinha planejado
encontrar os cinco assassinos, mas sentia que estava mais leve agora que essa
parte de sua vida se resolvera. Ou melhor, não totalmente. Caminhou mais alguns
metros para matar o segundo assassino, que agonizava sem um dos braços, e o
quarto, que se arrastava sem as duas pernas.
*
Seu problema agora era com a muralha. A batalha ainda se
desenrolava, e ele caminhava ileso por entre ela, visando a porta. Alguns
eventualmente tentavam pará-lo, mas morriam tão facilmente, que ninguém mais
resolveu tentar. Ao finalmente se encontrar diante dela, percebeu uma falha à
altura do peito. Não uma falha qualquer. Era reta, lisa e profunda.
Como se tivesse sabido disso a vida toda, desembainhou Fúria
e a encaixou na falha.
Uma luz branca explodiu e se alastrou pelas colinas, cegando
a todos por um segundo. E reinou o silêncio.
*
Ainda segurava Fúria enfiada na porta quando virou a cabeça
para trás. Estava só. Não havia mercenários, ou sanguessugas, muito menos
Guerreiros da Paz ou Corações Leais. A paisagem era diferente, havia mais
verde, cheirava melhor e as cores eram mais vibrantes. Não muito longe, vira um
homem se aproximar devagar.
Seu pai.
Sabia que era ele, aqueles olhos claros e bondosos não
poderiam ter outro dono. O simples semblante do homem o fez chorar. Tinha
atravessado.
“Meu menino”, disse o homem sério, como sempre fizera, e o
abraçara.
Seu pai tinha a mesma aparência da época em que morrera, e
os dois agora não distavam muito na idade. Poderiam passar por irmãos
facilmente.
“Como isso é possível? Como o senhor está aqui?”
“Aqui não existe possível e impossível, menino. Aqui, se as
coisas têm de ser, elas são.”
“Estou morto, então? Aqui é o paraíso do qual os sacerdotes
tanto falam?”
O homem sorrira.
“Tudo o que se fala lá fora não chega nem perto de tudo o
que há aqui. A Verdade é como nós a chamamos. E ela é tão bonita. Você não
entenderia, ninguém entenderia. Mas um dia irão.”
“Tenho tantas perguntas... Preciso saber...”, disse
Sebastian afoito.
“Acalme-se, acalme-se meu garoto. Você já sabe de tudo, não
sabe? Apenas este lugar é feito de perguntas. E você? Sabe do que é feito?”
Sebastian respondera antes que pudesse pensar.
“De respostas.”
“Exato! Não há nada aqui que seja escondido, também não há
mentiras. Como eu disse, a Verdade é tão maior do que tudo o que já se pensou,
o que se pensa e o que se pensará sobre ela.”
Sebastian sentia isso. Podia se perguntar tudo! Qualquer
coisa! E teria a resposta. Podia lembrar o rosto da mãe agora.
“O senhor atravessou a muralha porque eu fui o escolhido. Eu precisava vir aqui e voltar.”
O pai sorrira novamente. Sebastian continuou.
“O senhor atravessou sem uma porta, sem uma chave. Eles o
consideraram digno... A Verdade o aceitou. Deram-lhe Fúria por ser um objeto
que qualquer um cobiçaria. Mesmo os que o amavam. Mesmo o seu mestre. O senhor
sabia que ia morrer, sabia tudo.”
O pai não sorrira ali, parecia até mais velho agora que
Sebastian o observava melhor. Então o pai disse.
“É uma das coisas que acontece quando se sai daqui. Muitas
coisas você esquece, porque sua mente não suportaria saber. Mas outras, você
lembra. Sempre lembrará. Sua mente escolherá o que será melhor ser lembrado.”
“Mudanças grandes são esperadas de mim. Se eu soubesse
antes...”, disse Sebastian. “Mas não me sinto digno.”
“A negação é natural, até mesmo quando já se sabe tudo.
Muitas vidas dependerão de você, Sebastian. O novo mundo precisará de você. Não
será fácil, mas nada o é de verdade. Eu precisei passar pelo que passei para
que você chegasse aqui. E você precisou passar pelo que passou para sentir o
que está sentindo agora.”
Sebastian sabia o que sentia, e sabendo tudo, retirou a
espada da muralha. Na lâmina não estava mais escrito Fúria. Estava escrito Remorso
“Quando o senhor recebeu a espada, ela ganhara o nome
Determinação”, disse enquanto lágrimas escolhiam de seus olhos. “Sei o que
preciso fazer. Preciso construir um novo caminho. Preciso mudar.”
“E o melhor de tudo é que agora você sabe que vai conseguir.
Mas quando voltar ao outro lado, tenho certeza que não saberá mais. Esse tipo
de saber não existe lá.”
Acessou a informação para saber de sua mãe, se ela estaria
deste lado também, e compreendeu mais uma coisa. Seu pai não estava mais lá.
Seu pai agora era sua mãe, e sorria como toda mãe que olha o filho sorri.
“A Verdade é muito maior.”, disse Sebastian, e virou-se
novamente para a muralha. Antes de atravessá-la, antes de deixar para trás o
saber absoluto, soube, mesmo antes de ver, que o nome da espada mudara
novamente. Ela não se chamava mais Remorso.
Chamava-se Redenção.
Fim